quarta-feira, 24 de março de 2010

Art. 302 da Lei n. 9.503/97


Vistos para sentença.


I – Relatório.

O representante do Ministério Público em exercício nesta Comarca ofereceu denúncia contra Saleh Hussein Bdeir, já qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do art. 302 da Lei n. 9.503/97, tendo em vista dos atos delituosos assim narrados na peça acusatória:
No dia 03 de fevereiro de 2008 (domingo de Carnaval), por volta das 23:30 horas, o denunciado SALEH HUSSEIN BDEIR, conduzindo o veículo VW/GOL 1.6, cor preta e placa MFX-3898, pela Rodovia SC-401, na altura do km 2.800 (frente à 'Construnorte'), Vargem Pequena (sentido bairro-centro), imprudentemente e sem observar as regras mínimas de direção, eis que dirigia em velocidade incompatível com o local, ao realizar uma curva fechada, perdeu o controle do veículo e saiu da pista, vindo a atropelar a vítima Chinate Manoel Duarte, que estava no acostamento em frente a um ponto de ônibus, sendo que, em razão de politraumatismo (cf. laudo de exame cadavérico de fl. 11), veio a óbito no dia seguinte (fls. II/III).

Acostado aos autos encontra-se o laudo pericial n. 073/08, de exame cadavérico (fls. 10/11).
A denúncia foi recebida em 01º de agosto de 2008 (fl. 38).
Citado (fl. 46), o acusado apresentou defesa preliminar, sustentando a inocência do acusado e arrolando testemunhas (fls. 47/56).
Recebida a defesa, foi designada audiência de instrução e julgamento (fl. 59).
Durante a instrução criminal foram ouvidas seis testemunhas da acusação (fls. 155/156, 157, 158, 159, 161 e 162) e uma da defesa (fl. 160), sendo, ao fim, ultimado o interrogatório do acusado (fls. 163/164).
Encerrada a instrução, as partes apresentaram alegações finais, tendo o Ministério Público requerido a condenação do acusado nos termos da denúncia (fls. 170/176). A defesa, por sua vez, pugnou pela absolvição do acusado, sustentando a ausência de culpa (fls. 179/194).
Os autos vieram conclusos.
É o breve relatório.

II – Fundamentação.

{...} 3. Trata-se de ação penal pública incondicionada, na qual imputa-se ao acusado Saleh Hussein Bdeir a prática do crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, nos termos do art. 302 da Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), in verbis:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.


Narra a denúncia que na data de 03 de fevereiro de 2008, por volta das 23h30min, o acusado dirigia seu veículo VW/Gol 1.6 pela Rodovia SC-401 e, na altura do quilômetro 2.800, perdeu o controle do veículo, pois dirigia imprudentemente e sem observar regras mínimas de direção, vindo a atingir a vítima Chinate Manoel Duarte, o qual faleceu no dia seguinte em razão das lesões provocadas pelo atropelamento.
A materialidade exsurge do boletim de ocorrência de fls. 04/06, do Croqui de Boat de fl. 09, do Laudo Pericial de fls. 10/11 e das fotografias de fl. 25.
Quanto à autoria, restou comprovado nos autos que o acusado dirigia o veículo que atingiu a vítima, levando-a a óbito. Contudo, entendo que não ficou caracterizada a culpa do agente, o que passo a fundamentar.
Sustenta a acusação que o acusado deu causa à morte da vítima, pois dirigia em alta velocidade em uma curva fechada, caracterizando assim a imprudência e, consequentemente, a culpa do agente. Claro que se o intérprete pensa na lógica causalista/finalista e não sofisticou sua abordagem, não sabe que a única possibilidade de responsabilização perante o CTB é na modalidade de imputação objetiva em que não só deve se demonstrar o desvalor da conduta, como também o do resultado, mediante a "criação de risco não permitido". È que dirigir veículo é uma atividade em que o risco é inerente. A possibilidade de responsabilização demanda, por exemplo, como pontuei no julgamento da Ap. Crim. N. 122, de Joinville, (5a Turma Recursal): "LESÕES CORPORAIS – DELITO DE TRÂNSITO – CNT, ART. 303 – PRINCÍPIO DA CONFIANÇA – CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA E RESPONSABILIDADE PENAL DO CONDUTOR DO VEÍCULO INCOMPROVADAS – ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE PROVAS – CPP, ART. 386, VI. No âmbito das infrações de trânsito, o Princípio da Confiança fixa os limites do risco permitido. Segundo esse Princípio, aquele que se comporta adequadamente pode esperar/confiar que os outros também mantenham conforme as regras próprias." Leonardo Schmitt de Bem, em livro que está no prelo (Direito Penal de Trânsito), pontua sobre as teorias possivelmente aplicáveis: " Prognóse Póstuma Objetiva. Quando é possível dizer que um risco foi criado? Luís Greco formula a questão e informa que a doutrina a responde com base na prognose póstuma objetiva, herança da teoria da causalidade adequada, consistente num juízo de valor realizado pelo juiz que, dotados de todos os conhecimentos, inclusive do autor, a respeito da conduta praticada, faz um julgamento posterior, aferindo se esta conduta gerava considerável possibilidade de lesão ao objeto de ação . No campo prático, teria por que o juiz supor que a conduta do condutor, embriagado, que desrespeita o sinal de trânsito e imprime alta velocidade para realizar ultrapassagem defronte a um colégio no horário em que os alunos deixam a instituição, gera real possibilidade de lesionar algum discente? A resposta é positiva em uma perspectiva ex ante. Logo, houve a criação de risco pelo condutor. (49.3) Ausência de Criação de Risco. Como efeito lógico, em primeiro lugar, na ausência de criação de risco não se pode punir o agente. Exemplo de escola é do condutor que, não obstante cumpra com as regras do tráfego e de manutenção do veículo, em dia de chuva, perde sua direção em razão de um repentino lençol de água, colidindo com motociclista que seguia em sentido contrário, provocando a morte deste. O evento seria imputável ao agente pela teoria da condição, mas não é a solução correta, porque não houve criação de risco: conduzia com respeito às regras de segurança e de conservação do veículo. Também paradigmático é o caso do pedestre que se lança subitamente na frente do automóvel dirigido prudentemente pelo motorista e dessa conduta resulta seu óbito, uma vez que o condutor não teve possibilidade de evitar o acidente. Na situação, não obstante haja a morte do pedestre, não há fundamento para a ação típica de homicídio por parte do condutor pela falta de criação de risco. Conclusão diversa decorre no caso de adoção da teoria da condição, pois pelo processo de eliminação hipotético, uma vez eliminada a presença do condutor, o resultado fatal não ocorreria, sendo excluída a sua responsabilidade no âmbito do tipo subjetivo pela falta de previsibilidade , o que seria desnecessário aplicando-se o primeiro postulado do desvalor da ação."
Em suma, do contexto dos autos não se extrai nenhum elemento que comprove a imprudência, negligência ou imperícia do acusado, sendo crível a sua versão de que a vítima deu ensejo ao acidente quando, ao tentar atravessar a rodovia em local inapropriado, foi surpreendida, dando causa ao fatal acidente. Neste contexto, antecipo, a absolvição, pela dúvida, é de rigor, pois a acusação não conseguiu comprovar sua carga probatória.
Interrogado em juízo (fls. 163/164), Saleh Hussein Bdeir afirmou: que, no dia dos fatos, o interrogando estava transitando no sentido bairro-Centro, pela pista da esquerda; que viu um vulto na pista, entre a pista do sentido bairro-Centro e a pista do sentido Centro-bairro; que desviou do vulto, foi para a pista da direita, perdeu o controle do carro e caiu no barranco; que não sabe se o vulto estava parado ou em movimento; que transitava a sessenta ou setenta Km/h; que o local é mal iluminado; que ouviu um barulho no carro, mas não sabe se bateu na vítima; que não lembra se a vítima ficou "jogada" sobre a faixa de rolamento; que a testemunha Jean Pierry começou a debochar do acusado e este lhe xingou; que a testemunha disse para o acusado "vou te ferrar"; que no dia dos fatos, havia ido na casa de seu pai, nos Ingleses, a qual estava alugada; que, na sequência, foi buscar Sabrina, também nos Ingleses, e, no momento do acidente, estava voltando de lá; que iam para a casa do interrogando na Trindade; que iriam ficar em casa; que sua carteira de motorista foi expedida em 30/10/2007; que sua carteira de habilitação é definitiva; que o fato aconteceu no domingo de carnaval; que não havia bebido no dia dos fatos, pois não costuma beber.


Com efeito, a acusação de imprudência do agente gira em torno do suposto "excesso de velocidade", conduta agravada ainda pelo fato de o acidente ter se dado em uma curva fechada, o que demandaria ainda mais atenção por parte do condutor. Ocorre que dito excesso de velocidade não passa de suposição.
A testemunha Jean Pierry Azevedo, em seu depoimento judicial, assim se manifestou: que, no dia dos fatos, o depoente estava transitando na SC 401, no sentido Centro-bairro; que viu o acusado vindo em sentido contrário; que o carro do acusado colheu a vítima em frente ao ponto de ônibus; que não recorda se a vítima estava no acostamento ou sobre a faixa de rolamento; que acredita que o acusado estava em alta velocidade, mas não pode afirmar pois estava em sentido contrário e estava prestando atenção na sua direção; que o depoente parou para prestar auxílio; que, pelo que recorda, a vítima estava com as pernas do joelho para baixo sobre o asfalto e o corpo fora do asfalto; que o acusado caiu no mato com seu carro; que acredita que o acusado vinha na pista da direita, se perdeu ao fazer a curva, foi para a esquerda e ao voltar para a pista da direita se perdeu e atropelou a vítima; que o depoente viu o acusado ainda no local do acidente, quando este saiu do carro e subiu o barranco; que a aparência do acusado era normal, sendo que o depoente não recorda se estava machucado; que não conversou com o acusado após o acidente; que a curva a qual o depoente se refere é no sentido bairro-centro, para a esquerda; que no sentido em que transitava o depoente, era para a direita; que a curva fica um pouco antes do ponto de ônibus na frente do qual ocorreu o acidente; que o local do acidente era iluminado; que acredita que o local era bem iluminado; que não recorda se há acostamento no local; que acredita que o croqui de fls. 09 corresponda aos fatos. (fls. 155/156- grifou-se).


Neste ponto, cabe salientar que em suas alegações finais, de maneira não usual, o representante do Ministério Público, suprimiu da transcrição trecho essencial dos relatos, dando conotação completamente diversa aos dizeres do testigo Jean Pierry, consoante se vê na transcrição completa (f. 155), na qual afirmou categoricamente não poder afirmar se o acusado estava em alta velocidade, dizendo ainda que estava prestando atenção na sua direção e não nos veículos que andavam em sentido contrário, como, aliás, era de se esperar. Este relato, pois, não serve como sustentação para a conclusão que retira a acusação.
De outro norte, a testemunha Cláudio Fortunado Albino, Policial Rodoviário, disse que ao chegar no local do acidente observou "que a poça de sangue mencionada estava em cima da faixa de rolamento" (fl. 157), o que foi endossado pelo também Policial Rodoviário Roberto Luiz da Silva: "que a poça de sangue mencionada no croqui de fls. 09 se localizava na margem da terceira faixa, próxima a uma canaleta" (fl. 158).

Ainda, importante é a informação do testigo Hélcio Nascimento Moritz Júnior, que, questionado, asseverou: "que ouviu do pessoal do SAMU que pela posição em que estava a vítima não era possível que o acusado tivesse batido nela" (fl. 161).
Compulsando as fotografias de fl. 19 e seguintes, nota-se através da posição onde foi verificada a poça de sangue que a vítima não estava no ponto de ônibus, e sim na pista ou muito próxima dela, sendo provável que buscava atravessar a rodovia quando foi surpreendida pelo veículo do acusado.


Ademais, mesmo que não se admita a culpa exclusiva da vítima, tenho que o Ministério Público não logrou comprovar a sua pretensão acusatória na medida que nada indica ter o acusado agido com imprudência, devendo ser absolvido por ausência de provas.
Extrai-se da jurisprudência catarinense, em caso análogo: HOMICÍDIO CULPOSO – ACIDENTE DE TRÂNSITO – ATROPELAMENTO – IMPREVISIBILIDADE DO EVENTO DANOSO – VÍTIMA QUE ATRAVESSOU FORA DA FAIXA DE PEDESTRE – AUSÊNCIA DE PROVAS DE QUE O APELADO ESTIVESSE EM ALTA VELOCIDADE – FATALIDADE – MANUTENÇÃO DA ABSOLVIÇÃO – RECURSO MINISTERIAL DESPROVIDO Não estando cristalinamente comprovada a culpabilidade, não se pode lastrear um decreto condenatório tão-somente em deduções e presunções. Em sendo frágeis os elementos de convicção quanto à culpa do réu, outra solução não há do que a absolvição do mesmo, pela dúvida, sob pena de se desrespeitar o princípio básico da apreciação probatória, segundo o qual o ônus da prova cabe a quem alega (Apelação Criminal n. 2006.012467-6, de São Lourenço do Oeste. Rel. Des. Jorge Mussi).


Diante do exposto, a absolvição do acusado, na forma do art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal, é a medida que se impõe.

III – Dispositivo.

Por tais razões, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia de fls. II/III para ABSOLVER o acusado Saleh Hussein Bdeir, já qualificado nos autos, da imputação do crime descrito no art. 302 da Lei n. 9.503/97, com base no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Transitada em julgado, arquivem-se.
Florianópolis (SC), 22 de março de 2010.

Alexandre Morais da Rosa
Juiz de Direito

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