sexta-feira, 18 de junho de 2010

Eutanásia


Ontem rolou um encontro bem bacana no doutorado. Foi abordado um pouco da problemátia atual da biotécia numa prospectiva espanhola, mais precisamente, a questão da eutanásia. A palestra foi ministrada pelo Prof. Fernando Rey Martinez da Universidade de Valladolid. Abaixo destacarei um pequeno artigo que escrevi, sem publicação, que reforça o que foi transmitido pelo professor espanhol.

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Por que não permitir ao agente a possibilidade de transmitir a outrem o poder de fato que possui sobre sua vida e, assim, originar uma temática abolicionista para o caso da eutanásia, respeitados certos critérios? Por que não seguir uma postura atípica para o homicídio no “ataque do terceiro” representado pelo auxílio à morte de uma pessoa, que, segundo fundada avaliação médica está em estágio terminal, padecendo de um grave estado de sofrimento físico ou mental? Por que punir ao aliviar o sofrimento alheio?

Há legislações que descriminalizaram essa conduta (leia-se: Holanda, Bélgica e Luxemburgo). Outras regulam o instituto do homicídio a pedido da vítima (leia-se: Alemanha e Portugal). No Brasil a eutanásia se identifica com o homicídio privilegiado (art. 121, § 1º). Entendo que deveria existir a descriminalização desta figura, porquanto o conflito com outros direitos fundamentais, (análise constitucional do direito penal) como a dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade, conduz à relativização do direito à vida.

Isso porque, vida não é tão-somente “quantidade”, porém também “qualidade" (Faria Costa), adjetivação que deve perdurar “durante toda a existência do ser humano" (Cláudia Neves Casal). Que critérios, portanto, devem ser respeitados para preservar ao paciente o direito de “deixar de viver”? Inicialmente o padrão objetivo, isto é, um diagnóstico médico atestando que o sofrimento que assola o paciente em estado terminal é insuportável e irremediável. Com este parecer nasce o padrão subjetivo: a autodeterminação, consistente na avaliação pelo paciente de sua real capacidade e vontade de prosseguir os fins e as metas da vida. Aferindo negativamente esta “qualidade de vida” poderá pedir seu encurtamento.

Uma eventual ausência de consciência será suprida pela intervenção de familiares ou pessoas ligadas por fortes laços de amizade, neste caso, entretanto, valendo-se do valor indiciário da vontade presumida ou do testamento do paciente, como também a intensidade dos sofrimentos ou dores e a proximidade da morte (por exemplo, menos de seis meses).

Entendo ainda, que afora o profissional da medicina, outras pessoas possuem a capacidade de compreensão do sentido moral que o paciente assume ao decidir deixar de viver. O ato humano de compaixão não nasce apenas na relação médico-paciente, mas o é anterior, porquanto presenciado previamente e diariamente por parentes ou amigos (nesse aspecto é interessante assistir a produção
Menina de Ouro de Clins Eastwood). Estes também passam a olhar o direito alheio de “deixar de viver” não mais como uma barreira inultrapassável, mas como expressão da máxima solidariedade. Assim, defendo a impunidade dos últimos (hoje, em tese, a extensão do privilégio, com a redução de pena). Atenção! Nas legislações que autorizam a eutanásia apenas não se pune o profissional da medicina, porém o Projeto de Reforma do Código Penal em tramitação no Congresso Nacional não exige que somente o médico possa praticar a eutanásia.

Pode a eutanásia classificar-se em ativa direta ou indireta e passiva.

A primeira manifesta-se pelo encurtamento do período de vida realizado de forma intencional, normalmente por meio da administração de uma injeção letal ou com veneno. Configura-se, neste caso, o delito de homicídio e não participação no suicídio, porque não é o moribundo que produz a última e irreversível causa de sua morte.

A eutanásia ativa indireta ou ortotanásia é lícita do ponto de vista penal brasileiro, inclusive regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina, porquanto a vontade direta do agente não é provocar a morte da vítima, mas tratá-la de maneira calculada e desejada para diminuir o sofrimento (medidas paleativas ou de duplo efeito), sendo que o tratamento utilizado provoca um natural encurtamento do período de vida. Para tanto os anestésicos eficientes devem ser ministrados com o acordo da vítima – ou pela presunção de sua vontade –, que assume o risco de acelerar sua morte.

A eutanásia passiva constitui a renúncia, em regra do médico, mas também de um parente, em prolongar a vida do paciente em estado irreversível, traduzida, em especial, sob o ponto de vista normativo, numa conduta omissiva de cessar a oxigenação ou não proceder a uma reanimação. Porém, não possui o médico ou o familiar o dever de agir por imposição legal (art. 13, § 2°, a)? Certamente, porém a impunidade resulta de solicitação expressa do paciente – ou pela presunção de sua vontade – para que não mais prossigam a intervenção, pois o tratamento constitui real atentado a sua dignidade humana. Nesse caso, a pessoa não morreria porque não há mais o tratamento, mas pela evolução de sua doença.

Costa Andrade, citando a doutrina de Hirsch, aduz: “não há nenhuma possibilidade de cura coercitiva. O dever de tratamento do médico deixa de subsistir quando, por decisão expressa e livre, o paciente o recusa. Há de respeitar-se tal recusa como uma expressão da autodeterminação”. O mestre conimbricense entende que a vontade do paciente é decisiva. Pode-se receber com ressalvas tal posicionamento, pois é aceito que o médico, em especial, que continua na posição de garante, excepcionalmente possa contrariar a decisão daquele, uma vez que não está obrigado a atuar contra as suas próprias convicções. Ressalte-se, inclusive, que não se pode falar apenas de um dever de atuação do médico, mas também de um direito profissional que lhe é garantido de salvar a vida do paciente. E essa intervenção não gera uma eventual responsabilização pelo delito de constrangimento ilegal (art. 146, § 3º).

De outra banda, pune-se a ação do médico ou do parente que praticam a eutanásia passiva, embora tenham agido por piedade, sempre que a vítima solicitar conscientemente que prossigam a intervenção. Para Roxin “o paciente pode desejar viver sua morte em plena consciência, sem a ver transformada em um sono suave. Pode o doente ter razões teológicas ou filosóficas para tanto, ou ser simplesmente uma pessoa sobremaneira corajosa, que quer comunicar-se com os que lhe são íntimos, ou regular problemas sucessórios”.

Finalmente, por motivos evidentes a eutanásia não pode ser concebida para o aniquilamento de velhos, fracos, inválidos ou pessoas doentes, não obstante incuráveis, como defendeu, por exemplo, Platão na sua República, conforme aduzem Lopes de Brito e Lopes Rijo: “assim, estabelecerás na cidade médicos e juízes [...] que hão de tratar os que forem bem constituídos de corpo e de alma, deixarão morrer os que fisicamente não estiverem nessas condições e mandarão matar os que forem mal formados e incuráveis espiritualmente. Parece-me que é o melhor, quer para os próprios pacientes, quer para a cidade”. Técnica que, no regime nacional-socialista alemão, ficou conhecido como “vidas indignas de ser vividas” (Figueiredo Dias).

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