segunda-feira, 11 de julho de 2011

Um porre de embriaguez ao volante: a quinta dose

Para entrar em coma. Em uma não muito distante decisão, o Superior Tribunal de Justiça, por meio do Desembargador convocado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Celso Limongi, acompanhado integralmente por seus pares, entendeu que o art. 306 do CTB não exige de modo expresso o exame toxicológico de sangue para comprovar a embriaguez do motorista.

“Habeas corpus. Embriaguez ao volante. Art. 306 do Código de Trânsito brasileiro. Pedido de extinção da ação pela por ausência de prova da materialidade do delito. Realização de exame de ar alveolar pulmonar. Prescindibilidade de exame pericial específico. Ordem denegada” (STJ, 6ª Turma, Habeas corpus n. 117.942/RS, rel. Celso Limongi, j. 22/02/2011).

Vou me ater em citação doutrinária que destacou que o presente crime é de perigo abstrato. Considerações mais aprofundadas não foram apresentadas, até porque, provavelmente o Ministro desconheça que por uma suposta debilidade do conceito de bem jurídico foram criados a rodo os delitos de perigo abstrato. Em síntese, entendeu que nesse tipo de delito uma lesão ou uma concreta colocação em perigo do bem jurídico é estranha ao tipo. O fundamento da punição está vinculado à mera desobediência à vigência da lei (só faltou citar Jakobs!).

Não irei me debater exaustivamente sobre essa questão nesse ensaio. O farei no seguinte, pois considero a questão da legitimidade dos delitos de perigo abstrato extremamente interessante.

Nesse momento prefiro me ater ao precedente jurisprudencial destacado pelo relator para fundamentar sua decisão, enunciado no sentido de corroborar a corrente seguida de que o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é um delito de perigo abstrato. Textualmente:

“[...] Criminal. HC. Embriaguez ao volante. Art. 306 do CTB. Delito de perigo concreto de dano. Realização de exame bafômetro. Prescindibilidade de exame pericial específico. Ordem denegada. I. O crime de embriaguez ao volante é delito de perigo concreto indeterminado, e não de perigo abstrato. II. Não basta o ato de dirigir embriagado, devendo haver a comprovação de que a conduta se revelou perigosa para terceiros, mesmo que indeterminadamente considerados. Ausente o dano potencial à coletividade, o fato será atípico penalmente, apenas, subsistindo, a responsabilidade administrativa, para a qual o perigo abstrato. III. Para a configuração do delito, faz-se necessária a comprovação da existência de potencialidade lesiva concreta […]” (STJ, Habeas Corpus n. 153.311/RS, 5ª Turma, rel. Min. Gilson Dipp, DJe 18/10/2010).

Minha preocupação reside na falta de critério para a escolha de julgados a fim de justificar o ponto de vista do Ministro. Abriu-se a ferramenta de busca do respectivo tribunal, elegeram-se as palavras chaves e o resultado foi copiado e colado. Não se fez uma simples leitura. Atente que não houve a mínima cautela em analisar uma veemente contradição entre a doutrina citada (que defende tratar-se de delito abstrato) e o precedente enunciado (que diz ser delito de perigo concreto).

Mas isso também é praxe em Tribunais Estaduais. Solicito que acompanhem um precedente da Corte Catarinense no qual é possível observar na mesma decisão ora o art. 306 do Código de Trânsito como de perigo abstrato, ora como de perigo concreto. A relatora da confusa decisão é a Desembargadora Salete Silva Sommariva. O acórdão foi oficialmente publicado em 30/11/2009. Destaco a primeira passagem:

“[...] Como característica prejudicial ao réu, a nova redação passou a exigir, como comprovação do crime de embriaguez ao volante, não mais que o agente exponha a dano potencial a incolumidade de outrem, bastando, para tanto, que conduza veículo automotor, na via pública, com concentração alcoólica por litro de sangue igual ou superior a 0,6 (seis decigramas) [...]. Dessa forma, não mais desponta como requisito essencial a direção ou a exposição de outros ao risco causado pela direção de condutor fisicamente ou psicologicamente alterado pelo uso de substâncias alcoólicas ou entorpecentes, perfectibilizando-se o delito somente com a mera conduta de dirigir embriagado, com concentração aferida por meio do aparelho de dosagem alcoólica [...]” (TJSC, 2ª C. Crim. Apelação criminal n. 2009.026222-9).

Ocorre que em outra parte da decisão, quando desclassifica o delito de embriaguez ao volante para a contravenção de direção perigosa prevista no art. 34 do Decreto-lei n. 3.688/41 por meio da aplicação do instituto da emendatio libelli, a relatora salienta que a infração do Código de Trânsito é crime de perigo concreto e, inclusive, para fundamentar a análise apresenta precedente do Superior Tribunal de Justiça. Textualmente enfoco a mudança de posicionamento:

“[...] Ademais, apenas a título argumentativo, poder-se-ia pressupor que o crime definido no art. 306, revogou, ainda que parcial e implicitamente, a contravenção penal (art. 34), por se tratar da mesma matéria. Entretanto, vale frisar que não há falar-se, no caso, em revogação, uma vez que, além de aludido crime tratar-se de normal especial e a contravenção penal de norma de caráter geral, cuidam os institutos de bem jurídicos diversos, vale dizer, aquele, em seu art. 306, é considerado de perigo concreto enquanto esta, no art. 34, é reputada como de perigo abstrato”.

E depois cita um precedente do Superior Tribunal de Justiça:

O Superior Tribunal de Justiça também consolidou o entendimento de que o crime de embriaguez ao volante (art. 306) é considerado delito de perigo concreto (Recurso especial n. 515.526, rel. Min. Felix Fischer, j. em 02/12/2003). [...]”(TJSC, 2ª C. Crim. Apelação criminal n. 2009.026222-9, relª. Des. Salete Silva Sommariva, DJ 30/11/2009).

Surpreende-me a variação de natureza jurídica que o delito do art. 306 da Lei de Trânsito foi vítima e, repito, no mesmo acórdão, pois no início do voto implicitamente depreende-se tratar-se de crime de perigo abstrato, contudo na última passagem destacada altera-se para um crime de perigo concreto. Chega a causar desconforto, porquanto ao final da decisão não se alcança uma conclusão. Ah! Nem vou me ater ao ano da mencionada decisão do Superior Tribunal de Justiça. O porre está grande, mas eu ainda enxergo a data dessa decisão: 2003! Acho que houve uma reforma na lei não faz muito tempo equipe de assessoria e ilustre Desembargadora.

Regressando ao voto de Celso Limongi, outro julgado citado foi relatado pela Min. Laurita Vaz. Deste precedente será possível extrair interessante ponto como ponte à anterior análise e que diz respeito à classificação do delito como de perigo abstrato. É ao menos o que se depreende da linha de remissão ao julgado do Ministro Félix Fischer. Textualmente:

“[...] ‘O delito do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é de perigo abstrato, e para sua comprovação basta a constatação de que a concentração de álcool no sangue do agente que conduzia o veículo em via pública era maior do que a admitida pelo tipo penal, não sendo necessária a demonstração da efetiva potencialidade lesiva de sua conduta […] (STJ, Habeas corpus n. 140.074/DF, 5ª Turma, rel. Min. Felix Fisher, DJe 19/12/2009)” (Habeas corpus n. 155.069/RS, 5ª Turma, rel. Min. Laurita Vaz, DJe 26/04/2010).

E por que destaco essa passagem? Explico que a intenção não é corroborar a tese defendida pelo Desembargador convocado Celso Limongi, pois já deixei claro que sua contradição foi patente (análise inicial), porém para destacar questão que há tempo chama a minha atenção e que aqui penso ser apropriado – não obstante confesse estar receoso da melhor nomenclatura – chamar de inércia contra argumentativa. Quiçá com exemplos seja mais fácil esclarecer.

No HC n. 155.069/RS a Min. Laurita Vaz, citando outro precedente e sem tecer uma linha de consideração própria, entendeu que o art. 306 do Código de Trânsito era um delito de perigo abstrato. Alguns meses depois no julgamento do HC n. 158.311/RS acompanhou o relator que apresentou o entendimento de se tratar de delito de perigo concreto. Recentemente no julgado HC n. 175.385/MG, voltou a defender a primeira tese em apenas dois parágrafos de sua própria produção.

Outro exemplo, dentro desse mesmo contexto, é o do Ministro Jorge Mussi. Em abril do ano passado ele acompanhou a Min. Laurita Vaz no HC n. 155.069/RS que perfilhou tratar-se de delito de perigo abstrato. Já em setembro votou na esteira do Min. Gilson Dipp no HC n. 158.311/RS que, contrariamente, perfilhou se tratar de crime de perigo concreto. O mais interessante é que silenciou na apresentação de argumentos contrários a esse entendimento, ainda mais quando um mês antes, em julgado de sua relatoria, RHC n. 26.710/DF, defendeu que o art. 306 do Código de Trânsito se deve incluir entre os delitos de perigo abstrato. Literalmente:

“Recurso em habeas corpus. Embriaguez ao volante (art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, com a redação dada pela Lei n. 11.705/2008). Crime de perigo abstrato. Peça inaugural que atende aos requisitos legais exigidos. Inicial acusatória que descreve crime em tese. Inépcia não evidenciada. O art. 306 do Código de Trânsito inclui-se entre aqueles considerados de perigo abstrato, isto é, para a sua configuração prescinde-se da demonstração do efetivo risco causado pela conduta incriminada (Precedentes)” (STJ, Recurso em Habeas corpus n. 26.710/DF, 5ª Turma, rel. Min. Jorge Mussi, DJe 26/04/2010).

Quando no acórdão de própria relatoria procura-se, por imperativo constitucional, demonstrar as razões de decidir. Quando em sessão de julgamento, pouco importa se a fundamentação do outro julgador é contrária a tese pessoalmente defendida. Será suficiente concordar quanto ao dispositivo da decisão, lavando-se as mãos para as possíveis contrariedades ao modo pessoal de decidir. Parece bastante simples seguir o dispositivo da decisão (indeferimento da ordem de habeas corpus) e não se comprometer necessariamente com a tese.

Que situação delicada, mas não a minha, e sim a dos Tribunais!

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