O
perigo da moralidade como bem jurídico penal
Wilfried Bottke, antes de comentar
interessante decisão da Corte Constitucional Federal alemã sobre a
constitucionalidade do incesto, questionou se a doutrina dever-se-ia corrigir a
si mesma por meio de decisões desse Tribunal. O sentido de sua pergunta dizia
respeito a não mais proclamação de que um tipo penal só é legítimo para a tutela
de bens jurídicos e não para evitar imoralidades, pois no julgado também se entendeu
pela possível proteção penal da moral. [1]
Importo seu questionamento, pois o
Supremo Tribunal Federal decidiu que no delito de casa de prostituição,
previsto no art. 229 do Código Penal, não se tutela nada diverso à moral e aos
bons costumes. Textualmente: “[...] no crime de manter casa de prostituição
[...], os bens jurídicos protegidos em benefício de toda a coletividade são a
moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância que,
portanto, devem ser resguardados pelo Direito Penal, não havendo que se falar
em aplicação do princípio da fragmentariedade [...]”. [2]
Seguindo Bottke, é possível legitimar
uma incriminação com base unicamente na moral e nos bons costumes? Para
responder ao questionamento se deve sopesar que a função da ciência penal não é
somente a de controlar criticamente a legislação, mas ainda a de orientar o
legislador e, com efeito, o julgador. Os teóricos do Direito penal não podem apenas
censurar, mas também devem sugerir – não obstante atentos aos riscos de
críticas da própria doutrina e do desprezo do legislador – uma fundamentação
dos limites do domínio político em matéria de criminalização.
Para Figueiredo Dias, embora pudesse
citar outros nomes, “não é tarefa do Direito penal, nem primária, nem
secundária, proteger a moral”. [3]
Isso, pois, “impede-se que o Direito penal se atribua tarefas irreais como um
agente de transformação social”. [4]
Curioso é que o Min. Ricardo Lewandowski destacou que “considerações de cunho
moral não cabem, evidentemente, numa discussão jurídica como esta”, mas, mesmo
assim, julgou de acordo com a relatora.
E realmente não cabem, porque
se o preceito tutela somente a moral e os bons costumes, para esse objetivo haveria
outros e melhores meios do que o Direito penal. Ademais, considerar que toda a
sociedade é beneficiada com a incriminação é sugerir uma sociedade
completamente intolerante (o que poderia legitimar a proibição penal da troca
de casais, por exemplo), ou seja, é não avaliar que resulta muito duvidoso que
seja plausível o recurso a um consenso social sobre a moral e os bons costumes em
uma sociedade pluralista e complexa como a atual.
A Ministra relatora fez referência
à reforma legislativa operada pela Lei n. 12.015/2009. Com uma atenta leitura
se depreende a substituição da própria designação do respectivo título atinente
aos crimes sexuais. Algo que já havia ocorrido na Alemanha, por exemplo, na
década de sessenta do ultrapassado século com a influência de Roxin e outros
penalistas. [5]
Não se fala mais em crimes contra os
costumes, entendido como o fundamento ético-social ligado aos sentimentos
gerais da moralidade sexual, mas em delitos
contra a dignidade sexual.
Como o objetivo legislativo é possibilitar
que homens e mulheres disponham do próprio corpo do modo que bem entenderem,
enaltecendo-se, assim, a dignidade sexual e, por evidente, sem olvidar das
condições de realização da ação, isto é, privativamente e com o consentimento
dos envolvidos, entendo que os julgadores não devem alterar a avaliação legislativa
ou continuar enaltecendo a vontade anterior sob o propósito de assegurar as
expectativas sociais de “toda” a coletividade, pois, mais além de “não ser
possível afiançar como verdadeiros os preceitos morais das multidões”, como já
declinava Dworkin, [6]
deixam de proteger os verdadeiros bens jurídicos e passam a tutelar somente a
vigência da norma, ainda que ocultem o nome de Jakobs. [7]
Embora estivesse o delito ao qual
se reporta a Ministra sob a tipificação prevista no título crimes contra os
costumes – enfatize-se, antes da reforma
– tem-se que tal concepção confronta com um Direito penal pautado no texto
constitucional e que rechaça toda sorte de disposições de cunho moral, porque
“são atentatórios ao princípio da dignidade da pessoa humana, e, portanto, ao
postulado da alteridade”. [8]
Esta consideração é muito útil, inclusive, para afastar o parecer da
Procuradoria-Geral da República – em sentido contrário – a que fez referência a
relatora. [9]
Limitar à liberdade e à
autodeterminação sexual o bem jurídico tutelado, como defendo, significa
“substituir o objetivo genérico de tutela da moralidade sexual, por assim
dizer, difusa, por bens jurídicos específicos que pretendam, de fato, preservar
as condições de existência da sociedade ou os intangíveis valores da
personalidade”. [10]
Ademais, como corolário do abandono
da moralidade sexual, simultaneamente deixa-se de imprimir vigilância ostensiva
às pessoas, possibilitando que cada qual escolha o que melhor lhe aprouver, [11]
no caso, encontrar-se voluntariamente numa casa para a realização sexual de
seus clientes. Significa, em outras palavras, valorizar a autonomia humana que
é a expressão máxima da liberdade e, por conseguinte, concretizar o princípio
da dignidade humana.
Neste âmbito frisa Renato Marcão
que “há que se buscar um sistema de regulamentação criminal menos hipócrita
possível, no qual não existe espaço para a tutela de valores puramente morais”.
[12]
Isso não significa, por evidente, condescendência em relação a condutas
delituosas que possivelmente possam ocorrer no interior desses locais, como,
exemplificando, o tráfico de mulheres ou de drogas. Entretanto, para evitar
tais comportamentos não é necessário valer-se de concepções morais. Para falar
crua e sumariamente, o Estado não deve desempenhar um papel de tutor moral e se
valer do Direito penal como técnica pedagógica.
No mesmo julgado decidiu-se que “o
princípio da adequação social, por si só, não tem o condão de revogar tipos
penais”. Igualmente o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou no sentido que
“a tolerância da sociedade ou o desuso não geram a atipicidade da conduta” [13]
e que “a eventual leniência social ou mesmo das autoridades públicas não
descriminaliza a conduta”. [14]
Realmente não é em termos de
adequação social que esse delito deverá ser analisado nas Cortes Superiores de
Controle e não defendo sua descriminalização por motivo de leniência da
sociedade, mas sim, porque não há qualquer objeto jurídico a ser tutelado neste
comportamento, salvo socorrendo-nos unicamente da moral ou dos bons costumes
que, repita-se, deveriam ser repudiados penalmente, porém assim não o fez a Ministra.
É simples: sem bem jurídico tutelado não há de se falar em tipo penal e, em
conseqüência, em adequação social.
Logo, respondendo à Wilfried
Bottke, entendo que definitivamente não é a doutrina penal que deve se adequar
ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, mas sim, que seus integrantes
estudem as teses doutrinárias e, portanto, deixem de seguir uma cartilha que o
Direito penal é o Direito Judicial, e nada mais. Um colegiado que não exerce
uma função crítica quanto ao bem jurídico tutelado favorece, talvez
inconscientemente, a ocorrência de uma inflação de leis penais, uma vez que sob
os ombros da imoralidade será capaz de se ver mais adiante, ou seja,
indiretamente com o apoio da moral poder-se-á, como menciona Luis Greco,
“descobrir razões a partir das quais será possível justificar qualquer
proibição penal”. [15]
[1] BOTTKE, Winfried. “¿Adiós a la exigencia de
protección de los bienes jurídicos?”, in Derecho
Penal del Estado Social y Democrático de Derecho. Libro en homenaje a Santiago
Mir Puig. Trad. Trapero Barreales, Jericó Ojer y Martínez Cantón. Madrid: La Ley, 2010, refere-se à
decisão do BVerfG 2 BVR 392/07, de 26/03/2008.
[2] 1ª
Turma, Habeas corpus n. 104.467/RS, relª. Ministra Cármen Lúcia, de 08/02/2011.
[3] DIAS,
Jorge de Figueiredo. Questões
Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999.
[4] DIEZ RIPOLLÉS, José. “El bien jurídico
protegido en un Derecho penal garantista”, in Jueces
para la Democracia, n. 30, 1997.
[5] ROXIN, Claus. “¿Es la protección
de bienes jurídicos una finalidad del Derecho penal?”, en La Teoría del Bien Jurídico. Trad. Íñigo
Ortiz de Urbina Gimeno. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 444.
[6] DWORKIN, Ronald. Levando os
Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 372.
[8] FRANCO, Alberto Silva; SILVA, Tadeu Antonio. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 8ª ed. São Paulo:
RT, 2007.
[9] “[…] Temerário defender-se, assim, interpretação do texto
constitucional que, a pretexto de prestigiar o exercício pleno das liberdades
públicas, o faz em detrimento de princípio fundamental […]”.
[10] PALAZZO, Francesco. Valores
Constitucionais e Direito Penal. Trad. Gérson Pereira dos Santos. Porto
Alegre: Fabris Editor, 1989.
[11] ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento
e Acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra, 2004, p, 388.
[12] MARCÃO, Renato. “Casa de prostituição. O crime do art. 229 do
Código Penal”, in Revista Síntese Direito
Penal e Processo Penal, n. 65. Porto Alegre: IOB, 2011, p. 118.
[13]
Agravo regimental no recurso especial n. 1.167.646/RS, rel. Min. Haroldo
Rodrigues, DJe 07/06/2010.
[14] Recurso
especial n. 820.406, rel. p/ acórdão Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe
20/04/2009.
[15]
GRECO, Luís. “Tem futuro a teoria do bem jurídico?”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 82. São Paulo: RT, 2010.
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